Será que sou professora?

Será que sou professora?

Um textinho que gosto bastante e estava guardado só para mim

Minha experiência como professora começou há muitos anos, com oito anos de idade eu já ajudava na igreja e, por vezes, dei aulas de catecismo; também ensinei toda vizinhança a fazer tricô (fui uma professora bastante abusiva nesse período). Essa narrativa, no entanto, inicio de um ponto posterior, espero que ela deixe transparecer a natureza da minha relação com a educação. Várias questões e vivências foram impactantes na minha formação como educadora, mas existe uma bastante especial porque ela resume as razões pelas quais a sala de aula é o melhor lugar para mim. É onde me encontro mais próxima daquele “eu” que eu gostaria de me tornar um dia. 

Aconteceu assim: em uma CONAE (Conferência Nacional de Educação), provavelmente em 2009, ouvi a didatização de uma situação que observava como professora, mas cujas bordas eu não delineava tão claramente. João Cardoso Palma Filho, numa versão livremente adaptada, assim explicava a exclusão na educação brasileira: quando o aluno chega na universidade e não tem os requisitos, que os professores consideram mínimos, para estarem ali, ouve-se “é culpa do Ensino Médio que não prepara bem os alunos para a Universidade”. Quando os alunos iniciam o Ensino Médio e não têm os requisitos, que os professores consideram mínimos, para estarem ali, ouve-se “é culpa do Ensino Fundamental 2 que não prepara os alunos para o Ensino Médio”. 

Esse discurso se repete até que, se o aluno inicia a Educação Infantil sem os requisitos mínimos, sejam lá quais forem os requisitos mínimos necessários para cursar a Educação Infantil, ouve-se “é culpa dos pais que não preparam os alunos para a Educação Infantil”, atualmente temos também a culpabilização da creche, mas o Palma parou na Educação Infantil mesmo, já dá para ter uma ideia, não é mesmo? Quando se convida esses pais à escola, e se diz que seu filho não está preparado para a Educação Infantil, e se cobra que ele faça alguma coisa, ouve-se “não sei o que fazer com esse menino, ele é assim mesmo, não dá para escola”. 

Desse modo, em última instância, a culpa do fracasso escolar é do sujeito. Todo um sistema social, que não foi capaz de preparar esse sujeito para a escola, que se materializa no discurso escolar como “culpa da família”; todo um sistema educacional que não é capaz de assumir sua responsabilidade, nem sempre plena, mas profundamente real, se resume à culpa individual de um sujeito que não serve mesmo para a escola, para a erudição. 

Eu não fui esse sujeito. Eu tive sorte. Mesmo não sendo originária de uma família escolarizada, era branquinha, boazinha, “inteligente”. Não precisava estudar muito para me destacar na escola. Hoje eu sei que eu tenho uma neurodivergência e essa é a razão de ter tido tanta facilidade, mas durante muito tempo eu senti apenas que era esquisita, mas os professores gostavam de mim, então, isso talvez tenha me salvado em muitos aspectos.

Cheguei à universidade pública e, então, muito rapidamente percebi a diferença que existia entre mim e os colegas de classe. Talvez ser uma boa aluna de uma escola pública não fosse suficiente, mas eu novamente tive sorte (na verdade, minha neurodivergência me ajudou a me adaptar rapidamente, mas eu achava que era sorte). Tive uma orientadora de Iniciação Científica que corrigiu meus textos (aqueles textos, que eram muito elogiados na escola pública, definitivamente não serviam à universidade pública) e me ajudou a percorrer os caminhos universitários. 

Fiz pesquisa, ganhei prêmios, fiz mestrado, fiz estágio no exterior e agora faço doutorado, sempre em universidades de ponta, na maioria das vezes, com bolsa. Eu sou “um ponto fora da curva”. De onde eu venho, somos expulsos dos ambientes educacionais muito antes de sequer saber que existe universidade “que não precisa pagar”. E, por entender que eu tive sorte – e que essa sorte me foi proporcionada por professores e professoras que não apenas me preparam para a escola, mas moldaram o meu caráter, me deram condições de criar meus filhos com dignidade, de sair da condição de vítima da sociedade, – a sala de aula, independentemente no nível de ensino, se Educação Infantil ou pós-graduação strictu sensu, para mim, é esse lugar mágico onde eu posso me tornar a potencializadora de tantos talentos.

Esses talentos tantas vezes se escondem naquele aluno que “a família não pega firme” e também naquele aluno que “vai sozinho”. Eu posso ser a pessoa que não se conforma com a mediocridade, que não aceita simplesmente que não há o que fazer, posso ser a pessoa que todos os dias chega na escola com a certeza absoluta de que pode fazer a diferença, de que aquele novo dia é uma nova chance para mim e para os meninos e meninas (adolescentes e adultos também – foco na criança interior haha) cuja educação me é confiada. Nesse sentido, eu não me tornei professora, me torno a cada novo dia uma nova versão da professora que um dia eu quero me tornar.

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